Está claro que esta campanha presidencial é muito diferente de todas as outras. Faltando menos de um mês para a eleição, temos a candidata do partido Democrata sendo entrevistada na Fox News, uma emissora com um histórico de alinhamento com o partido Republicano. Do outro lado, Donald Trump, ex-presidente e candidato presidencial pelo partido Republicano passou duas horas debatendo eleitores latinos na Univision, emissora de língua espanhola com forte público cativo que majoritariamente apoiou o lado Democrata. Gastar o tempo precioso do candidato nesta altura da campanha para tentar roubar uma ínfima fração de votos do outro lado é uma estratégia heterodoxa, algo não visto nos últimos 30 anos. O normal seria reforçar o trabalho na base e aumentar o turnout, o comparecimento de apoiadores. Estamos diante de uma nova lógica, porque os eleitores não estão agindo como esperado.
A primeira grande mudança é que as minorias não estão votando conforme a expectativa do establishment. Os democratas sempre acreditaram que um alto nível de comparecimento os beneficia, pois votam um maior número de minorias e de jovens, que tendem a apoiar ou se identificar com as bandeiras do partido. Na última eleição presidencial, em 2020, o comparecimento foi o mais alto da história, e ainda que Trump tenha perdido, o partido Republicano performou bem nas eleições legislativas, aumentou o seu espaço no Capitólio. O candidato perdeu, mas o partido foi bem.
Das sete eleições especiais mais recentes, que ocorrem fora do ciclo eleitoral quando uma vaga legislativa tem que ser preenchida por algum motivo, os Democratas venceram cinco. Eleições especiais são eleições de baixíssimo comparecimento, o que, na lógica aplicável aos últimos 50 anos de eleições americanas, seria bom para os Republicanos. A título de comparação, todas as cinco eleições especiais da década de 90 em que um assento no Capitólio estava em jogo foram vencidas por Republicanos.
A lógica está invertida. O entendimento histórico de que comparecimento alto beneficia Democratas e comparecimento baixo beneficia Republicanos não pode ser aplicado nesta eleição. Isto ajuda a explicar as estratégias eleitorais heterodoxas desta campanha.
O segundo ponto é ainda mais crucial. A divisão cultural existente no país é palpável, mais forte que muitas divisões históricas como raça, etnia e classe econômica. Acontece que esta divisão é mais forte do que a própria identificação partidária dos eleitores. A polarização não é inteiramente política, pelo menos não no sentido partidário. Em algum momento ocorreu um desalinhamento entre a massa polarizada e os partidos, este vínculo enfraqueceu-se. É por isso que vemos o Trump na Univision e a Kamala na Fox News. A aderência partidária está mudando e, por consequência, os próprios partidos não são mais os mesmos.
Uma consequência natural desta mudança e um elemento que poderá revolucionar a política americana é o aumento no número de eleitores que se identificam como independentes. Em 2023 pesquisas da Gallup mostraram que 49% dos eleitores americanos se já se consideravam independentes, mais do que a soma dos dois principais partidos do país. Em períodos de eleição os números ficam mais equilibrados, um terço de independentes e um terço para cada partido. Mas a volatilidade de apoios e a tendência de surgimento de alternativas são consequências diretas deste fenômeno.
A despartidarização é a principal tendência que irá moldar o futuro da política norteamericana. A aceleração deste fenômeno é potencializado pela queda da confiança nas instituições partidárias, fruto de ataques e campanhas de desinformação que refletem o deslocamento da janela de Overton* na política moderna digital no mundo inteiro. Esta despartidarização é ainda mais forte entre jovens, que tendem a ver a política como fãs de Fórmula 1: apoiam o piloto, e não importa se ele corre pela Lotus, McLaren ou Williams. A pesquisa New York Times/Siena mostra corrobora esta tendência. Entre jovens de 18-29 anos, 36% se consideram independentes, 32% democratas e 21% republicanos. Para eleitores acima de 65 anos, os resultados são 22%, 38% e 36%, respectivamente.
O vínculo partidário é ainda mais tênue, pois mesmo os eleitores que tendem a apoiar e se identificam com as bandeiras e o programa de governo apresentado por um partido, não necessariamente acreditam que o partido poderá ajudá-los. Neste cenário, independentemente do resultado desta eleição a despartidarização e a erosão dos vínculos partidários históricos será um fator que potencializará a volatilidade e poderá pavimentar um caminho viável para uma terceira via em eleições futuras.
*Trata-se da margem de tolerância para ideias políticas aceitas no debate público.