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Análise: A falta de transparência e a autossuficiência como métodos do processo legislativo

Quando grupos políticos no poder se articulam para impor à sociedade a soberania de seus entendimentos, pilares da democracia podem ser colocados em xeque

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Passados quase 40 anos que o Brasil formalizou sua adesão à chancela de país democrático, práticas antidemocráticas seguem coexistindo em diferentes instâncias da sociedade. Talvez uma das mais contraditórias, do ponto de vista moral, seja percebida no comportamento da classe política, representada por aqueles que, em linhas gerais, se propuseram a defender o Estado Democrático de Direito.

Manobras linguísticas e até distorções da gênese conceitual, são artifícios comumente percebidos na narrativa daqueles que fazem uso da falta de transparência e da autossuficiência como métodos do processo legislativo.

A crítica contida nessa reflexão não é exclusiva de um ou de outro grupo de políticos que divergem ideologicamente. Ao contrário, ninguém parece estar completamente imune. 

Não é necessário se esforçar muito para enumerar exemplos mundo a fora, onde grupos políticos presentes nas diferentes instâncias de poder, independente da chancela ideológica que recebam, se prevaleçam da “maioria” adquirida via processo democrático, especialmente por meio das eleições, para escamotear condutas ditas antidemocráticas que, por óbvio, têm potencial para subverter alguns de seus princípios balizadores.

Esse movimento, embora seja tratado aqui a partir de fatos contemporâneos, foi outrora observado. Para melhor compreendê-los sugiro a leitura de diferentes autores, como exemplos: i) Alexis de Tocqueville, em seu livro intitulado “A democracia na América”, ii) Karl Polanyi, no livro “A Grande Transformação: as origens políticas e econômicas de nossa época” e, iii) Robert Dahl, na “Poliarquia: participação e oposição”. Naturalmente, o debate teórico e conceitual não se limita a esses.

Para não distanciar do objeto central, que quero centralizar na explanação de fatos contemporâneos em detrimento de um debate teórico e conceitual, resgato um momento em que o debate proposto voltou a ganhar forte destaque nos meios de comunicação: o corte temporal está alicerçado nos dois mandatos consecutivos (2021 e 2022 e, 2023 e 2024) do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). A tônica das matérias jornalísticas utilizou, a perder às contas, expressões como “atropela” e “tratora” para adjetivar as ações do deputado no comando da Câmara Federal.

Muitos sentimentos acompanharam sua gestão, dos mais enaltecedores aos mais críticos. Não pretendo fazer uma análise meritória do comportamento, principalmente por ter conhecimento que coexistem teses refutatórias. 

Por outro lado, observo o “fenômeno” e busco evidenciar que a mesma crítica, embora ainda não tenha tomado a mesma proporção midiática, aparenta estar presente no comportamento de outros políticos, como exemplo destacado: Rodrigo Amorim (União-RJ), deputado estadual no Rio de Janeiro. Inúmeros são os casos nos quais o deputado foi citado criticamente por valer-se da maioria de sua base de apoio para impor seu modus operandi.

Presidente da principal Comissão da Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), e recentemente nomeado líder do governo de Cláudio Castro (PL), Amorim vem recebendo críticas de outros deputados por adotar, certas vezes, comportamentos que colocam em xeque a transparência do processo legislativo. 

Algumas situações foram externadas publicamente e causaram certo constrangimento no parlamento, como exemplos: i) valer-se da condição de presidente da CCJ e do papel de liderança do governo para assumir protagonismo, via avocação da relatoria de projetos em pautas estruturantes e polêmicas, monopolizando decisões no seu núcleo duro, ii) mostrar-se autossuficiente e criticar outros parlamentares que dialogam com setores empresariais e de representação da sociedade para buscar contribuições sobre o mérito e impactos de projetos, iii) não dar o devido tempo hábil, via compartilhamento de seus pareceres, para que seus pares façam a devida análise antes de colocá-los em votação e, iv) usar sua influência e base de apoio no parlamento para, inclusive, tensionar pautas do próprio governador e impor o seu entendimento.

Para não deixar de citar um exemplo claro e recente, vamos ao PL 6034/2025, de autoria do governador, que propõe um aumento no percentual de repasse obrigatório feito por empresas que recebem benefícios fiscais, ao Fundo Orçamentário Temporário estadual (FOT). Nesse caso, o deputado avocou a relatoria (01/set, projeto publicado em 18/ago), criticou parlamentares que receberam setores empresariais e de representação da sociedade para buscar contribuições sobre o mérito e impactos do projeto (09/out), na percepção geral demorou para convocar audiência pública (reunião com entidades em 24/out, sem transmissão e após tensionamentos internos na disputa pelo protagonismo), sinalizou (26/nov) que compartilharia seu parecer num prazo hábil (28/nov) pelo menos aos membros da CCJ, mas o extrapolou (parlamentares alertaram que o receberam na hora da votação, em 02/dez – divulgação pública não houve) e, finalmente, valeu-se da maioria da base de apoio para legitimar sua versão final do texto, refutando as divergências e, “atropelando” | “tratorando” as críticas.

O que se pretende deixar evidente com essa reflexão é que os movimentos descritos, além de conter potencial para comprometer a percepção de lisura do processo legislativo, parece ser um dos motivos que vêm dando cada vez mais visibilidade ao Judiciário no debate técnico sobre normatizações. 

O criticado “ativismo judicial”, por vezes, é consequência, justamente, dos atos e decisões daqueles que o criticam. A qualidade da técnica legislativa é fundamental para a segurança jurídica e para preservar a separação dos Poderes, evitando que o Judiciário assuma um papel de legislador, o que pode gerar tensões institucionais e rebaixar a qualidade da democracia.

Roguemos por menos autossuficiência e, mais transparência e participação social efetiva no processo legislativo.

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